Un “buen muchacho” peronista: notas sobre un peronista ortodoxo asilado en Brasil

 

 

Jorge Christian Fernández (*)

 

 

Resumen

 

El propósito de este artículo es realizar un primer vuelo histórico sobre la trayectoria del periodista argentino José Maria Villone en Brasil, desde 1958 hasta principios de la década de 1970. Participó del tercer gobierno de Juan D. Perón (1973-1974) siguiendo el ascenso de José López Rega, jefe del grupo extremista Triple A, una de las personas más poderosas del círculo peronista por su influencia sobre Isabel Perón. Villone hizo parte deste entorno. El descubrimiento de documentos inéditos que registran la presencia de Villone en la comunidad de residentes argentinos del sur del Brasil y, posteriormente, su reaparición en documentos de la represión brasileña, señaló un objeto de investigación instigador. La investigación tuvo el objetivo de construir una narrativa histórico-biográfica y la pluralidad de fuentes es una característica de este artículo, siendo obtenidas tanto a partir de medios impresos, como de fondos documentales privados y de archivos represivos.

 

Palabras clave: Argentina; Terror de estado; Paramilitares; Peronismo; Extrema derecha.

 

 

A Peronist “buen muchacho”: notes on an Orthodox Peronist asylum in Brazil

 

Abstract

 

The objective of this article is to make a first historical flight on the trajectory of Argentine journalist José Maria Villon in Brazil, from 1958 to the early 1970s. He participated in the third government of Juan D. Perón (1973-1974) with the rise of José López Rega, head of the extremist group Triple A, one of the most powerful people in the Peronist circle because of his influence on Isabel Perón. Villon was part of that environment. The discovery of unpublished documents that register Villon's presence in the community of Argentines residing in southern Brazil and, later, his reappearance in documents of the Brazilian repression, pointed to an intriguing object of investigation. The research aimed to build a historical-biographical narrative and the plurality of sources is a feature of this article, being obtained both from the print media, as well as from private document collections and repressive archives.

 

Keywords: Argentina; State terror; Paramilitaries; Peronism; Extreme right.

 

 

Un “buen muchacho” peronista: apontamentos sobre um peronista ortodoxo asilado no Brasil

 

Resumo

 

O objetivo deste artigo é fazer um primeiro voo histórico sobre a trajetória do jornalista argentino José Maria Villone no Brasil, de 1958 ao início dos anos 1970. Participou do terceiro governo de Juan D. Perón (1973-1974) com a ascensão de José López Rega, chefe do grupo extremista Triple A, uma das pessoas mais poderosas do círculo peronista por sua influência sobre Isabel Perón. Villone fazia parte desse ambiente. A descoberta de documentos inéditos que registram a presença de Villone na comunidade de argentinos residentes no sul do Brasil e, posteriormente, seu reaparecimento em documentos da repressão brasileira, apontou para um instigante objeto de investigação. A pesquisa teve como objetivo construir uma narrativa histórico-biográfica e a pluralidade de fontes é uma característica deste artigo, sendo obtida tanto da mídia impressa, quanto em coleções documentais privadas e arquivos repressivos.

 

Palavras-chave: Argentina; Terror de Estado; Paramilitares; Peronismo; Extrema direita.

 

 

 


 

Un “buen muchacho” peronista: notas sobre un peronista ortodoxo asilado en Brasil

 

Introdução

 

Não é incomum que a pesquisa em fontes históricas primárias, quando levada a cabo com a profundidade e seriedade requeridas, sem engessamentos epistemológicos e ideias preconcebidas que ofusquem a capacidade de enxergar além dos nossos limites e das hipóteses e problemas auto impostos, possa levar-nos por caminhos inesperados. Isso faz parte das lides do historiador. De fato, em meio à pesquisa para meu doutorado sobre o exilio dos argentinos no Rio Grande do Sul (região fronteiriça com o Uruguai e a Argentina) deparei-me com vestígios de um personagem que habitava a capital, Porto Alegre, na década de 1960 e circulara na incipiente e reduzida comunidade argentina lá instalada. Seu nome: José Maria Villone. Embora ainda não se tenha demasiada informação a respeito do conjunto de suas atividades durante a sua relativamente longa residência no Rio Grande do Sul, ele deve ser citado em função da notoriedade adquirida em meados da década seguinte, quando veio a fazer parte do alto escalão do governo de Maria Estela Martinez de Perón, a Isabel.

Portanto, o objetivo deste artigo é efetuar um primeiro sobrevoo histórico sobre a trajetória do jornalista argentino Villone no Brasil, desde 1958 até o início dos anos 1970. Militante peronista histórico, mas de segundo escalão, ele se tornaria, no entanto, um personagem de vulto a partir do terceiro governo de Juan D. Perón (1973-1974) acompanhando a ascensão de seu amigo José Lopez Rega, ex-policial, ocultista e chefe do grupo paramilitar de extrema-direita Triple A. Cabe destacar que Lopez Rega se tornou um dos homens mais poderosos do círculo peronista, também dada à influência exercida sobre a esposa de Perón, Isabel. Villone, quem já era uma espécie de amigo/emissário/estafeta de confiança de Perón desde os tempos de exílio do líder, se tornou muito amigo de Rega no Brasil. Graças a essa rede de contatos, Villone fez parte desse “entorno” próximo ao general Perón e veio a ocupar a Secretaria de Imprensa e Difusão do governo Perón, na qual exerceu um poder arbitrário e quase sem limites sobre a mídia impressa, rádio, televisão, teatro e cinema da República Argentina.

A descoberta de documentos inéditos que registram a inscrição de Villone junto à comunidade organizada de residentes argentinos de Porto Alegre e, posteriormente, a sua reaparição em documentos da repressão brasileira nos sinalizou um instigante objeto de pesquisa. Que papel (ou quais papéis) desempenhou Villone no Brasil? Em que âmbito se deu a sua atuação no Brasil? Como era conformada a rede do peronismo ortodoxo no Brasil e quais suas articulações locais? São questões iniciais que, embora não respondidas na sua totalidade neste artigo, nos servirão de baliza para continuar a pesquisa. Deste modo, amparados em bibliografia especializada, da qual destacamos os trabalhos de Quesada (2003) e Larraquy (2007), partimos para investigação visando à construção de uma narrativa histórico-biográfica. Metodologicamente, a pluralidade das fontes é uma característica deste artigo, sendo utilizadas desde matérias oriundas da mídia impressa de vários países e documentação oriunda de arquivos repressivos hoje acessíveis, tanto físicos quanto digitais, bem como de acervos documentais privados.

Para melhor compreensão do leitor, dividimos o artigo em quatro itens, obedecendo a uma ordem cronológica. No primeiro, “Do Golpe de 1955 ao desterro dos peronistas no Brasil” retratamos a queda de Perón em 1955 e a debandada de seus seguidores (dentre estes Villone) asilados nas embaixadas ou refugiados nos países limítrofes.

No segundo, “O retorno de Villone à Argentina, a relação com Lopez Rega-Ferreira e a Triple A” apresentamos como este personagem se reinseriu rapidamente na dinâmica política argentina e galgou meteoricamente cargos no governo em função das suas conexões e suas redes transnacionais. Abordamos também os múltiplos papéis desempenhados por Villone no governo de Isabel Perón e seu envolvimento com o terrorismo estatal da Triple A.

No terceiro item, “O Golpe de 1976 e o ocaso de Villone” analisamos a perseguição transnacional contra a cúpula lopezrreguista empreendida pelo governo militar argentino, em especial contra Villone, e o périplo transitado por este na sua fuga e suas duas tentativas de asilo, no Uruguai e Paraguai.

Por fim, em “Reflexão final sobre um esquecido (in)conveniente”, elaboramos algumas considerações sobre este controverso personagem e já apontando para possíveis desdobramentos futuros desta pesquisa.

 

Do Golpe de 1955 ao desterro dos peronistas no Brasil

 

Após a derrubada violenta do governo constitucional de Juan Domingo Perón, em setembro de 1955, a perseguição e a repressão desencadeadas pelas forças antiperonistas levaram inúmeros colaboradores, militantes e simpatizantes do general populista em direção ao exílio, primeiramente em países limítrofes. Sabemos que alguns desses desterrados, perseguidos políticos, se instalaram também no Brasil e o jornalista e militante peronista, José Maria Villone estaria entre eles. De acordo com Maria Quesada (2003, p. 74), no ano de 1960, Villone já estaria instalado em Porto Alegre. Tal informação coincide com o Diário Oficial da União (DOU), de Fevereiro de 1961, processo onde consta que, em 25 de outubro de 1960, a Justiça concedeu a “Permanência” a José Maria Villone, residente no Rio Grande do Sul, uma vez que aceitos os documentos apresentados por ele a fim de cumprir com as exigências as quais se condicionara a sua permanência (DOU, Fevereiro 1961, p.1395). A numeração do Processo Nº 9 31.394-58 nos indica que Villone teria entrado com os papéis para solicitação de residência em 1958. Aparentemente, tal documentação se encontra no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro: “Assuntos Politicos: Entrada e Permanência de Estrangeiros: Permanência Definitiva: Jose Maria Villone”. O título “Assuntos Políticos” que antecede a descrição do conteúdo do processo de permanência de Villone sugere que se trata de um pedido de asilo ou similar. Entretanto, aguardamos ainda a remessa dessa documentação completa para confirmar informações e saber como foi o processo completo de residência.[1]

Segundo a pesquisa de Larraquy (2007, p. 86), Villone havia dirigido a revista Mundo Radial e teria emigrado pouco depois de ter sido despedido da editora Haynes, então sob intervenção federal, pelo seu “novo” chefe, o notável escritor e notório antiperonista Ernesto Sábato,[2] empossado pelo governo provisório da “Revolução Libertadora”. No entanto, tais ingerências do poder estatal nos meios de comunicação argentinos não se constituíam em novidade. Cabe recordar que, conforme Garcia (2015), em 1949, o peronismo no poder reestruturara a antiga Subsecretaria de Informações transformando-a e aperfeiçoando-a na Direção de Imprensa, Difusão, Publicidade, Espetáculos, Serviços Gráficos, Registro Nacional e Administração, o que implicou em intervenção do Estado nos meios de comunicação, buscando a centralização da comunicação política estatal e efetivação do controle político sobre os meios de comunicação privados.

Nesse sentido, a criação do grupo ALEA exerceu o domínio sobre os mais destacados jornais, emissoras de rádio e publicações do país, dentre eles a editora Haynes, uma cadeia privada de revistas, jornais e rádio. Sob a tutela estatal, a Haynes introduziu novas publicações, além das clássicas El Hogar, Caras y Caretas, mas sob o prisma ideológico do peronismo: Conquista, Cultura, Descamisados, Mundo Argentino; e todas as publicações derivadas de “Mundo”: Mundo Infantil, Mundo Deportivo, Mundo Agrário, Mundo Atómico, Mundo Peronista Mundo Radial.[3] A demissão de Villone desta última estava justificada, de acordo com Larraquy (2007, p. 86), em função de um artigo onde este criticava o governo “revolucionário militar” surgido da autoproclamada Revolução Libertadora. No entanto, dado o histórico caráter intolerante da práxis política argentina, é provável que Villone não precisasse de um motivo extra para ser expurgado. Ele pertencia organicamente ao regime deposto e isto bastava para sua exclusão do cenário político, laboral, etc.

Assim, dentro do pequeno universo representado pelo exílio peronista, se encontrariam diversos profissionais do meio jornalístico, quase todos diretamente vinculados aos meios de difusão e propaganda do deposto ancién regime peronista: radialistas, locutores, escritores e jornalistas. É possível que Villone fizesse parte deste grupo inicial e tenha se radicado no Uruguai antes de vir para o Brasil. No entanto, parece que o papel de Villone distava muito de ser um simples desterrado, dada sua ligação direta e até certa intimidade com Perón. Por este fato, comprovado pela correspondência encontrada pela professora Quesada (2003, p. 59, 74, 75), no Archivo General de la Nación, pode-se sugerir que Villone estava mais para um emissário, informante, assessor ou articulador político atuando a serviço de Perón, assim como muitos outros homens de confiança do general deposto espalhados por diversos países, especialmente na América Latina e Europa.

Neste sentido, cabe destacar o que representava em termos estratégicos para Perón poder contar com uma espécie de “base de apoio/central de informações” no Brasil, ainda mais em Porto Alegre, no extremo sul do Brasil, tão próximo do objetivo a ser reconquistado pelo hábil general estrategista: a Argentina. Segundo uma reportagem volumosa e sensacionalista assinada por Arlindo Silva, para a revista O Cruzeiro,em 1957 atuavam no Brasil o que o repórter chamou de “grupos comandos peronistas”. Esses comandos estariam encarregados de levar adiante uma suposta “Conspiração P-5”, um conjunto de operações clandestinas que envolviam ações diretas armadas e de sabotagem, dentre outras, com o intuito de enfraquecer o governo de Aramburu, artífice do golpe cívico-militar que derrubara Perón dois anos antes. Alguns desses peronistas, como Modesto Spacchesi, Valentin Irigoyen, Zoe Martinez e Elias Sojit, teriam chegado ao Brasil depois de passar um tempo como asilados na embaixada brasileira em Buenos Aires, durante o golpe de 1955.[4] Embora sem citar números e quiçá com uma dose de exagero, dado o posicionamento político liberal e antiperonista e antipopulista da revista,[5] Silva apresentava fac-símiles de documentos internos do movimento peronista no exílio, cartas de Perón a lideranças peronistas no Brasil. Não sabemos como Silva obteve o acesso a tais documentos, mas é muito provável que tenha tido acesso liberado pela polícia política do Rio de Janeiro, onde teoricamente era o fulcro da conspiração que a revista apresentava com estardalhaço.

Curiosamente, o próprio Coronel chefe da Divisão de Polícia Política e Social do Rio de Janeiro minimizava a atuação dos asilados argentinos e a possível conspiração, desautorizando o “furo de reportagem” da imprensa livre e democrática”.[6] Silva ainda insistia e afirmava que os tais grupos "comandos" no Brasil eram “muito numerosos”, havendo três grandes núcleos peronistas espalhados pelo país: Rio de Janeiro, São Paulo e Uruguaiana. Este último, de notável importância graças a sua localização estratégica, contaria com ramificações em Porto Alegre e no Paraná.[7] Se estes núcleos operaram em Porto Alegre é muito provável que Villone tenha pertencido a esta rede ou se vinculado com eles de alguma forma. Em 1974, em uma entrevista concedida ao jornal porto-alegrense Zero Hora Villone, já ministro, se jactava em afirmar que “Porto Alegre foi, na década de 1960, um dos principais centros de operações peronistas da América Latina e o caminho de contatos entre os partidários exilados e os da Argentina”.[8]

Além do espectro da militância peronista, Villone continuou a exercer atividades jornalísticas no Brasil, passando pela Rádio AM Farroupilha e pela TV Canal 5 Piratiní, transmissora sul-rio-grandense da extinta TV Tupí do Rio de Janeiro, vinculada ao Grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand.  Paralelamente Villone também se tornou um empreendedor ao instalar uma agência de publicidade em Porto Alegre, a Noel Publicidade, junto com dois sócios brasileiros, Cláudio Ferreira e seu irmão (Larraquy, 2007, p. 86). Ainda conforme Larraquy (2007, p. 179), por volta de 1970, Villone teria ocupado a gerência comercial da Rádio Farroupilha e também da TV Piratiní.

No âmbito da vida social, Villone estava vinculado à pequena, porém seleta, coletividade argentina de Porto Alegre, agrupada em torno ao Círculo Argentino de Porto Alegre (CADEPA). O CADEPA era um coletivo social da diáspora argentina, um clube formado primordialmente por argentinos residentes, de classe média ou classe média-alta, com múltiplos vínculos com a pátria-mãe e sob auspícios do Consulado Geral Argentino de Porto Alegre (Fernández, 2011, p. 536). O seu nome está registrado em uma lista de sócios do CADEPA editada provavelmente em agosto de 1973, como sendo o sócio número 48.[9] No documento (parcialmente manuscrito) não consta a data exata da sua filiação, entretanto, indica a filiação do sócio seguinte em maio de 1972. Portanto, se deduz que Villone fazia parte desta associação desde antes dessa data, talvez desde o início oficial do CADEPA, em 1968.[10]

 

O retorno de Villone à Argentina, a relação com Lopez Rega-Ferreira e a Tríple A

 

Com o levantamento da proscrição do peronismo e o ansiado, mas problemático, retorno de Perón a Argentina em 1973, Villone também empreendeu a volta à terra natal. Pouco depois, com a nova investidura de Perón como primeiro mandatário da República Argentina, o jornalista passaria logo a fazer parte da equipe do governo peronista, trabalhando novamente nos setores de imprensa e propaganda, dentro do aparato estatal. E é aqui quando se iniciou o período mais notório, porém tenebroso, da carreira deste personagem.

Destaca-se que, entre 1973 e 1974, Villone se encontrava entre os membros da temida Triple A, a Aliança Anticomunista Argentina, organismo paraestatal clandestino cuja finalidade expressa era [...] aniquilar aquellos indivíduos, cualquiera sea su nacionalidad, raza, credo, o investidura, que respondan a intereses apátridas, marxistas, masónicos, anticristianos o del judaísmo internacional sinárquico (Yofre, 2006, p.39). Indo além, a investigadora Patrice McSherry (2009, p. 114) aponta Lopez Rega, Villone e o comissário Alberto Villar como sendo os diretores do aparato criminoso da Triple A, que incluía agentes civis, militares, elementos de extrema direita, bandidos, todos irmanados numa “confederação paraestatal de esquadrões da morte” (Mc Sherry, 2009, p.114).

Amparados pelo escudo proporcionado pelo Ministério de Bienestar Social, dirigido por seu amigo, o ministro José Lopez Rega, os grupos paramilitares da Triple A foram responsáveis por uma longa lista de vítimas que incluía desde políticos, advogados de direitos humanos, intelectuais, padres terceiro-mundistas até simples militantes de base da esquerda ou de setores do próprio peronismo, em especial, a juventude revolucionária.

O sinistro Lopez Rega, ex-cantor de cabaré, ex-policial e autoproclamado “bruxo”, devido a seu gosto pelo ocultismo e diversas outras práticas esotéricas, havia se aproximado humildemente de Perón e obtido, gradativamente, a confiança deste e de sua esposa Isabel desde os tempos do exílio do velho líder na Espanha, em meados da década de 1960. Lopez Rega servira inicialmente como mordomo e segurança, mas aos poucos foi galgando espaços e se tornando uma espécie de secretário do casal Perón, tornando-se íntimo e, ao mesmo tempo, mostrando-se como indispensável na configuração da estrutura do poder. Após a morte de Perón, em 1° de julho de 1974, e a assunção de Isabel à presidência, Lopez Rega se tornaria ministro plenipotenciário, configurando-se como uma verdadeira “eminência parda” ao exercer uma influência quase ilimitada sobre a frágil e politicamente limitada figura da viúva-presidente.

Tanto Quesada (2003) quanto Larraquy (2007) afirmam que Villone e Lopez Rega já se conheciam de longa data. De acordo com Quesada (p. 74), em 1960, Lopez Rega havia passado pelo Brasil e residiu durante um breve lapso de tempo em Porto Alegre, onde reencontrou Villone. Para Larraquy (p. 86), esta ligação é ainda mais antiga e dataria de 1957. Mas a questão é que foi no Brasil, graças aos contatos propiciados por Villone e seu sócio Cláudio Ferreira (também um membro da fraternidade místico-esotérica conhecida como Ordem Rosacruz), que Lopez Rega tomou conhecimento dos ritos afro-brasileiros, em especial a umbanda, aos quais amalgamou a sua antiga prática espírita-kardecista e seus saberes esotéricos. Após a queda de Lopez Rega, a imprensa da época noticiou que ele chegou a ser “ungido” na umbanda no Templo do Sol e da Lua, sob a guia espiritual do babalorixá Wilson Ávila, em Porto Alegre.[11]

Depois de residir algum tempo no Brasil e trabalhar no laboratório de medicina alternativa Claufer, também de propriedade de Claudio Ferreira, Lopez Rega voltou à Argentina e se vinculou à loja Anael. Esta era uma seita de cunho político-esotérico, de tipo maçônico, a qual teria sido fundada por Perón e Getúlio Vargas, em 1954, e cujo objetivo mais premente era o retorno de Perón ao poder na Argentina. Eis que, quando da visita de Isabel Perón a Buenos Aires (como emissária do general), em 1965, o ex-policial Lopez Rega foi recomendado pelos membros da seita para servir-lhe de escolta durante a estadia. Nesse ínterim, Perón solicita à seita que lhe envie um emissário de confiança para que servisse como ajudante da Isabel na Espanha. Uma confluência de forças faz com que Lopez Rega fosse o escolhido: Isabel, também adepta do espiritismo, havia ficado encantada com a grandiloquência metafísica de Lopez Rega e intercedeu a seu favor, assim como o major Bernardo Alberte, um dos chefes da seita Anael e membro do círculo íntimo de Perón. A outra recomendação de Lopez Rega dada a Perón partiu de seu antigo amigo de Porto Alegre, José Maria Villone (Quesada, 2003, p. 75).

Com o passar do tempo, a ligação entre Villone e Lopez Rega se fortaleceria ainda mais. Além da forte amizade que os unia, ambos eram “irmãos”, pois eles faziam parte da mesma loja maçônica transnacional, a Propaganda Due (P2), uma organização de extrema-direita com base na Itália e ramificações na Argentina, Brasil e Estados Unidos. Na Argentina, a P2 teve forte influência no governo peronista ao contar com diversos membros colocados em postos-chave da administração.[12] Nessa organização secreta, Villone constava como o número 690 da lista de membros.[13]

Em 1973, ao retornar à Argentina junto com Perón, o jornalista Villone inicialmente desempenhou múltiplas funções no staff peronista, atuando como diretor do Banco Hipotecário, interventor na rádio El Mundo e também chefiando a imprensa estatal Codex, reduto dos setores políticos ligados a Lopez Rega. Todavia, o seu ápice na carreira política seria atingido no ano seguinte, um pouco depois da morte de Perón, em 22 de julho de 1974, quando o ministro Lopez Rega o nomeou para comandar a Secretaria de Prensa y Difusión (Larraquy, 2007, p. 301). É relevante destacar que a ascensão de Villone se enquadrava dentro de um projeto ambicioso de Rega, que começava pela intervenção e estatização dos canais de TV por parte do governo. Evidentemente, o objetivo maior era conquistar espaço nos meios de comunicação e calar definitivamente as vozes oposicionistas ao peronismo, especialmente as dos setores de esquerda. A manobra também evidenciava o encastelamento no poder daquela facção de extrema direita do peronismo que já se denominava lopezrreguismo.

Para Larraquy (2007, p. 301), a gestão de Villone na Secretaria de Prensa y Difusión foi mais rígida no controle das comunicações do que havia planejado o próprio Lopez Rega. Esse radicalismo de Villone o levou, posteriormente, a desentender-se com o seu velho amigo dos tempos de Porto Alegre. Duro peronista da velha guarda, Villone era intransigente na defesa do “verticalismo” dogmático que propunha a viúva-presidente Isabel Perón como a única “herdeira política” do general Perón, dentro do amplo leque de forças que compunham o movimento peronista.[14] Fanático extremado, para ele, Perón havia atingido um grau acima dos simples mortais e, conforme costumava dizer, Perón no se morirá nunca, porque Perón es inmortal (Viau, 2007).

Consoante com essa ortodoxia, o jornalista Villone desencadeou uma feroz censura nos mais diversos meios de comunicação como, no âmbito cultural, contra a chamada “infiltração marxista” e qualquer tipo de intervenção crítica, ofensiva ou jocosa que afetasse, no seu entender, o governo de Isabel. No meio radial e televisivo, as medidas inquisitórias do departamento chefiado por Villone atingiram indistintamente comediantes, jornalistas e comunicadores que tiveram seus programas abruptamente tirados do ar. Jornais e revistas também foram fechados e diversos músicos de renome, como Mercedes Sosa e Horácio Guarani, tiveram shows e festivais cancelados e seus discos proibidos (Larraquy, 2007, p. 301-487). A jornalista Magdalena Ruiz Guiñazú (2006), ela mesma uma vítima da arbitrariedade de Villone naquele período, recordou que:

 

durante el gobierno de Isabel se había promulgado la Ley de Prescindibilidad, que inhabilitaba a aquellos periodistas mal vistos por el Gobierno para desempeñarse en cualquier medio periodístico perteneciente al Estado. Como los canales de televisión y todas las estaciones de radio (menos Continental, Rivadavia y Del Plata) pertenecían al Estado, es fácil entonces advertir que, para aquellos a quienes se les aplicó aquella Ley 20.713, resultaba arduo desempeñarse en el ejercicio de la profesión. El Secretario de Prensa José María Villone (luego identificado como uno de los jefes de la Triple A) firmaba los telegramas que comunicaban la aplicación del correspondiente decreto.

 

As medidas punitivas de Villone, empreendidas contra os esquerdistas ou supostos esquerdistas, eram festejadas pelos setores mais reacionários do peronismo e especialmente veiculadas na revista El Caudillo, editada por Felipe Romeo, e cujo lema era: “o melhor inimigo é o inimigo morto”. A revista, que fazia uma aberta apologia da violência, não somente aplaudindo os crimes da Triple A como também lhe indicando futuras vítimas, era um órgão oficioso dos setores mais extremados do peronismo de direita e era diretamente financiada pelo ministério que presidia Lopez Rega. A simpatia e a ligação de Villone com os grupos para-policiais podem ser evidenciadas nestes dois exemplos.

Em dezembro de 1974, Villone ameaçou por telefone a diretora do jornal La Calle, Martha Mercader, caso o jornal não parasse com as denúncias sobre a existência da Triple A e as críticas feitas ao governo por não conter a violência paraestatal: – Mire, Martha, basta, y si no aténgase a las consecuencias – teria dito Villone à escritora (Quesada, 2003, p. 239). Em outra ocasião, no outono de 1975 (em plena fase de recrudescimento da violência ilegal do Estado), reverberou na imprensa argentina o assassinato (sob tortura) do repórter Jorge Money, do jornal portenho La Opinión, nas mãos da Triple A. Em ato de solidariedade e repúdio, diversos jornalistas e alguns meios de comunicação decretaram paralisação de atividades. Villone, além de nem sequer enviar condolências ou condenar o episódio, ainda promoveu uma campanha oficial pela TV contra os jornais que haviam aderido à manifestação, por considerá-los fomentadores de “violência e subversão” (Quesada, 2003, p. 288 e Larraquy, 2007, p. 337).

Contudo, no inverno de 1975, o obscuro reinado de Lopez Rega chegaria ao seu fim, arrastando gradativamente consigo o seu séquito. Como se não bastasse estar desgastado publicamente pela atuação desastrosa do novo Ministro de Economia, Celestino Rodrigo, homem do seu círculo e que havia promovido uma desvalorização da moeda em 100%, Lopez Rega ainda enfrentaria mais problemas. Em denúncia publicada pelo jornal La Opinión (baseada em um relatório preparado há tempos pelos serviços de inteligência militar que aguardavam um momento propício) se apontava Lopez Rega como mentor e financiador da Triple A. Além disso, ele estava envolvido ainda em desvios de fundos públicos e corrupção ativa em diversos níveis. As denúncias, obviamente, também implicavam outros membros do seu círculo imediato e até mesmo a presidente. Em julho de 1975, devido à pressão popular, o processo finalmente desembocou nas renúncias de Lopez Rega e mais quatro de “seus” ministros: das pastas de Justiça, Defesa, Interior e Economia (Anguita; Caparrós, 2006, p. 340 e ss.).

Entretanto, Villone ainda permaneceria mais um tempo a cargo da Secretaria de Prensa, como um resquício do lopezrreguismo no âmbito do poder. Todavia, os seus dias de “comissário político”, no dizer de Larraquy (2007), estavam contados. Durante os meses de outubro e novembro, a sucessão de escândalos e de investigações levadas a cabo pela Justiça também afetaram Villone. Ele foi acusado de ameaçar os proprietários da Editora Abril, caso não vendessem a empresa (Quesada, 2003, p. 372).

 

O Golpe de 1976 e o ocaso de Villone

 

O golpe militar de 24 de março de 1976 transformou Villone e muitos outros lopezrreguistas em criminosos prófugos. As “três A” já não eram mais necessárias, a repressão, agora racional e organizada, mas igualmente brutal, estava diretamente a cargo das Forças Armadas, como dissera o cineasta militante Raymundo Gleiser. Dada a coordenação repressiva entre as ditaduras (sabidamente iniciada ainda antes da Operação Cóndor por um amigo de Villone, o comissário Alberto Villar, da Triple A) Villone foi procurado no Brasil, onde era de conhecimento ter residido, assim como possuíra bens e possíveis locais para refúgio. Em uma matéria do Jornal do Brasil, de junho de 1975, quando do início do affaire Lopez Rega, destacava que Villone era um “velho amigo” de Rega e resumia a história da presença do jornalista no Brasil sinalizando simultaneamente suas vinculações no Rio Grande do Sul: [...] “este último [Villone], quando o peronismo estava fora da lei, trabalhou na imprensa em Porto Alegre e volta e meia vai ao Rio Grande rever os amigos”.[15]

Assim, em outubro de 1976, um documento onde constava a identificação “Confidencial” do Centro de Informações do Exército (CIE) do I Exército (RJ) apresentava uma relação com nomes de 149 argentinos. Todos eles eram procurados pelas novas autoridades militares da Argentina, onde eram acusados de terem praticado “ações subversivas” e partia-se do pressuposto que alguns deles poderiam encontrar-se refugiados no Brasil. Na longa lista, que incluía indistintamente guerrilheiros, militantes populares e membros do governo derrubado, constava “Jose Maria Willone” [sic], como o número 88 da lista. Este “Pedido de Busca”, irradiado tanto para as unidades das Forças Armadas, quanto para as polícias e os serviços de informações brasileiros requeria:

         

A) A imediata detenção e comunicação UU (urgente urgentíssimo) a esta AI (agência de informações) dos que forem encontrados em território nacional em situação irregular quanto à entrada no país.

B) Localização, manutenção sob vigilância cerrada e imediata comunicação dos que estiverem em situação legal no país.[16]

Ironicamente, Villone e alguns dos antigos homens de Lopez Rega, como o seu primo Carlos Villone, foram listados como “subversivos”, indistintamente junto com militantes de esquerda, aqueles aos quais tanto haviam combatido.

Em julho de 1976, depois de um período foragido, Villone foi finalmente preso no Uruguai, conforme informou o Cônsul argentino em Salto, Uruguai, ao seu superior, o ministro das Relações Exteriores, vice-almirante Cesar Guzzetti. Na correspondência, o Cônsul também se referia ao aceite, por parte da justiça do país vizinho, do pedido de extradição impetrado pela Argentina. Informava, também, que este seria protocolado após o período de férias judiciais, ou seja, depois de janeiro de 1977. Contudo, o Cônsul ressaltava que ainda havia possibilidade de recurso de apelação do advogado defensor de Villone junto a instâncias superiores de Justiça.[17] Nesse meio tempo, no ócio do cárcere oriental, Villone dedicou-se a escrever. O jornal espanhol El País noticiou a sua obra literária com um deixo de ironia: […] “ex-dirigente peronista, actualmente en prisión en Montevideo, está escribiendo una novela sobre su actuación en el Gobierno de Isabel Perón. El título es bastante significativo: Once meses y cinco días en el reino de Isabel la Católica”.[18]

Nesse ínterim, as autoridades brasileiras, em estreita colaboração com as argentinas, continuavam buscando as possíveis conexões de Villone no Brasil e, em particular, no Rio Grande do Sul. Uma série de três documentos de igual teor (“pedidos de busca”) emitidos pelo Departamento de Ordem Política e Social da Polícia Civil do Rio Grande do Sul (DOPS/RS) de junho a outubro de 1977, informavam os “dados conhecidos” sobre o réu, davam constância de sua prisão no país vizinho e, principalmente, solicitavam maiores informações. Os sublinhados são nossos:

 

José Maria Villone, jornalista argentino, que, foi Secretário de Imprensa no governo de Isabel Perón, recentemente, por solicitação da Justiça argentina foi detido no Uruguai, em decorrência das falcatruas que teria cometido à testa da referida Secretaria de Estado. [...] Dados Solicitados: a) Reitera-se o PB de referência; b) Apurar se José Maria Villone esteve recentemente no RS; c) Caso positivo, datas e locais freqüentados e, se possível identificação das pessoas com as quais manteve contatos; d) Outros dados julgados úteis.[19]

 

Infelizmente, não consta no arquivo consultado nenhuma resposta, ou continuação, a estes três reiterados pedidos de busca. Portanto, não sabemos se Villone esteve ou não refugiado no RS antes de ser preso no Uruguai, mas pelo conteúdo do documento, podemos deduzir que é bem provável que o antigo grupo de amigos e de pessoas anteriormente próximas a Villone tenha estado sob estreita vigilância policial e dos serviços de inteligência. Gente como seu ex-sócio, Cláudio Ferreira e provavelmente alguns de seus colegas do Círculo Argentino, o CADEPA. Em um documento da Polícia Federal brasileira destaca-se que Ferreira era um alvo de investigações há bastante tempo, visto que ele havia se naturalizado argentino em maio de 1974, para poder ocupar a presidência da Casa Argentina no Brasil (e receber um salário de três mil dólares mensais, de acordo com o comentário jocoso de um agente do DEOPS paulista), sediada no Rio de Janeiro, sob auspícios do então poderoso Lopez Rega. O mesmo dossiê relatava que, em outubro de 1974, Ferreira foi preso por introduzir material de propaganda do governo peronista e também para apurar se praticava alguma atividade política no Brasil.

O material apreendido se compunha de um lote da revista Las Bases, material doutrinário do peronismo ortodoxo editado por Norma Lopez Rega (filha do ministro Lopez Rega) e onde também colaborava José Maria Villone.[20] É factível que a busca por Villone e a vigilância sobre o seu círculo imediato correspondesse mais a um objetivo secundário: o objetivo principal dos organismos de segurança certamente seria José Lopez Rega, então um dos homens mais procurados pela Interpol. Seu paradeiro ainda era um mistério, não obstante, eram conhecidos seus sólidos contatos no Brasil. Logo, ao ampliar o foco da investigação incluindo os seus colaboradores e amigos mais próximos, talvez se chegasse finalmente até o famigerado “bruxo”. No entanto, isto não ocorreu, pois, em 1986, o próprio Lopez Rega se entregaria ao FBI, em Miami, sendo finalmente extraditado para a Argentina, onde morreria três anos depois, sem ser nunca julgado pelos seus múltiplos crimes.

Por sua vez, José María Villone, enquanto estava detido em Montevideu, foi alvo de uma disputa jurídica e política entre os governos militares da Argentina e do Uruguai. Conforme dissemos, a justiça argentina havia entrado com um pedido de extradição e este fora aceito, em dezembro de 1976, pelo juiz uruguaio Daniel Pereira Manelli. No entanto, a defesa de Villone conseguiu barrar a extradição apelando ao tribunal superior da justiça uruguaia, tal como havia alertado o Cônsul argentino em Salto. Em memorando secreto, de autoria do embaixador Federico Barttfeld, chefe do Departamento América Latina da Chancelaria Argentina, informou ao Subsecretário de Relações Exteriores sobre estes entraves legais. Em seguida, ele assinalou com uma possibilidade extralegal: “b) paralelamente, existiría intención, por parte del Ministerio del Interior del Uruguay, de proceder ejecutivamente por vía administrativa simple, expulsando en forma lisa y llana al prófugo y devolviendolo al país de origen (Argentina)”. Ainda no mesmo documento, o embaixador sinalizava que o próprio juiz que havia solicitado o pedido de extradição, o juiz federal Dr. Rafael Sarmiento, havia se interessado com essa possibilidade “administrativa” de entrega do réu, pois o juiz considerou [...] “de sumo interés este intento, habida cuenta de la importancia que el hecho revestiria como antecedente para casos similares”.[21]

Tal prática, conhecida como refoulement (devolução), era historicamente condenada pela justiça internacional e violava um princípio basilar da proteção internacional aos refugiados e asilados, o Protocolo de 1967 sobre a Convenção da ONU sobre os Refugiados de 1951 (Fernández, 2011, p. 80-81). Mas a “devolução” que já era de uso corrente entre as forças repressivas do Cone Sul, especialmente em zona de fronteira, se tornaria ainda mais facilitada pela chamada Operação Cóndor, que franqueou o acesso de comandos repressivos de um país ao outro para sequestrar ou buscar opositores já detidos. Ou seja, a legislação internacional não era óbice para a transnacional repressiva. Ao que parece, Villone escapou por pouco de ser vítima do aparato repressivo extraterritorial ilegal que, paradoxalmente, ele ajudara a consolidar com a Triple A. Por motivos ainda desconhecidos, parece que as autoridades uruguaias declinaram da opção extralegal e seguiram o curso da lei, provavelmente em função de uma disputa entre a Suprema Corte e o Ministério do Interior. Assim, Villone, que tinha um pedido de asilo impetrado pelo seu defensor,[22] não foi extraditado sendo liberado, mas obrigado a deixar o Uruguai.[23]

Ao sair do cárcere no Uruguai, Villone passou a viver discretamente em um dos tradicionais redutos de nazifascistas[24] e também de muitos colegas seus, peronistas de direita: o Paraguai. Também voltou ao jornalismo, desta vez empregado como “colaborador de assuntos internacionais” para o jornal Pátria. Não estranhamente, o Pátria era um diário ligado ao Partido Colorado e cuja função era servir como principal órgão propagandístico para o ditador Alfredo Stroessner. Pelo menos dois pedidos de extradição contra Villone foram impetrados pela Justiça argentina a Assunção, pelo mesmo juiz, Rafael Sarmiento.[25] Contudo, a justiça do Paraguai negou ambas as solicitações. Villone permaneceu, impune, sob a proteção do ditador Stroessner. Em 15 de dezembro de 1987, ele veio a falecer, de causas naturais, na cidade de Assunção, Paraguai.[26]

 

Reflexão final sobre um esquecido (in)conveniente

 

Como podemos observar ao longo do texto, Villone teve uma intensa atividade política na Argentina e no Brasil. Em parte, atividades clandestinas que ele exerceu paralelamente as suas atividades profissionais. Ou seja, ele vivia um “paralelismo global”, usando a expressão alcunhada por Emilio Mignone e sua a equipe do Centro de Estudios Legales y Sociales (1982) no tocante à modalidade repressiva imperante na ditadura argentina pós-1976, que interconectava mecanismos legais e públicos com métodos irregulares e clandestinos. De modo análogo, nosso objeto de estudo, o senhor Villone, exerceu uma duplicidade semelhante também na sua carreira política, já que além de ocupar um cargo de relevo como Secretário de Imprensa no governo de Isabel Perón e se dedicar a atividades inerentes ao cargo, ele também se dedicou a perseguir e caçar oponentes, não raras vezes usando tanto das suas prerrogativas ministeriais quanto da máquina repressiva extralegal.

Retomemos a questão inicial da introdução. Lembremos que, durante a pesquisa realizada pelo autor para sua tese de doutoramento, o nome de José Maria Villone saltou aos olhos dentre os papéis do CADEPA. A partir desse momento, nas diversas entrevistas feitas a membros do CADEPA (alguns deles sócios antigos), sempre foi perguntado sobre Villone: se o entrevistado se lembrava dele, o que este fazia, etc. Contudo, essas perguntas ficaram sempre sem respostas. Após a investigação ser concluída, mediante o uso de outras fontes, não surpreende que certas perguntas feitas pelo autor sobre Villone, a antigos membros do CADEPA, tenham sido respondidas com evasivas ou apenas com o silêncio. Afinal quem, nos dias de hoje, gostaria de lembrar ou assumir que teve algum vínculo, por mais indireto que fosse, com aquele obscuro e incômodo personagem da história recente argentina?

 

Figura 1

 

 

A presidente Isabel Perón no Salão Branco da Casa Rosada, 26 de marzo de 1975. À esquerda, o “bruxo”-ministro López Rega e, de óculos escuros, o secretário de Imprensa José María Villone.[27]

 

Bibliografia

 

Anguita, E.; Caparrós, M. (2006) La voluntad. Una historia de la militancia revolucionaria en Argentina: La patria peronista, 1974-1976. Tomo IV, Buenos Aires: Booket.

Centro de Estudios Legales y Sociales. (1982) El secuestro como método de detención. Buenos Aires: Centro de Estudios Legales y Sociales.

Fernández, J. C. (2011) Anclaos en Brasil: A presença argentina no Rio Grande do Sul, 1966-1989. (Tese de Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

Garcia, T. da C. (2015) Mundo Radial e o cancioneiro folclórico nos tempos de PerónNuevo Mundo Mundos Nuevos [En ligne], Images, mémoires et sons. Recuperado de: http://nuevomundo.revues.org/68075; DOI: 10.4000/nuevomundo.68075

Guterman, M. (2016) Nazistas entre nós: a trajetória dos oficiais de Hitler depois da guerra. São Paulo: Contexto.

Larraquy, M. (2007) Lopez Rega, el peronismo y la Triple A. Buenos Aires: Punto de Lectura, 2007.

Melón Pirro, J. C. (2005) Lo que se dice de lo que es. Reflexiones públicas sobre el peronismo después de 1955, Prohistoria, IX (9),131-152. Recuperado de: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/2188734.pdf

Quesada, M. S. de (2003) Isabel Perón. La Argentina en los años de Maria Estela Martinez. BSAS: Planeta.

Santos, R. G. C. dos (2015) A construção da ameaça justicialista. Antiperonismo, política e imprensa no Brasil (1945-1955). (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.

Yofre, J. B. (2006) Nadie Fué: Crónicas, documentos y testimonios de los últimos meses, los últimos días, las últimas horas de Isabel Perón en el poder. Buenos Aires: el autor.

Viau, S. La historia de una banda impune. Página 12, Edición Digital, 07/01/2007. Recuperado de: http://www.pagina12.com.ar/diario/elpais/1-78775-2007-01-07.html

Ruiz Guiñazú, M. (2006) "Jamás imaginamos lo que iba a ocurrir". La Nación, 19 de marzo de 2006. Recuperado de: http://www.lanacion.com.ar/789809-jamas-imaginamos-lo-que-iba-a-ocurrir

Mc Sherry P. J. (2009) Los Estados depredadores: la Operación Cóndor y la guerra encubierta en la America Latina. Montevideo: La Banda Oriental.

 

Fontes documentais

 

Archivo de Cancillería Argentina. Recuperado de: http://desclasificacion.cancilleria.gov.ar/userfiles/documentos//MOU_URUGUAY/47AH015804_182a_184.pdf

http://desclasificacion.cancilleria.gob.ar/userfiles/documentos//MOU_URUGUAY/47AH001_0009.pdf

Arquivo do Estado de São Paulo – São Paulo: DPF/GB: Encaminhamento 0732/74 SI/SR/DPF/GB - Revista Semanal Las Bases -15/10/1974 - Dossiê DEOPS 50-E-033 –

Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre: DOPS/RS: José Maria Villone. Pedido de busca N° 346/77/DBCI/DOPS/RS, 30/08/1977 – SOPS/E 1.1.86.2.1 DOPS/RS: José Maria Villone. Pedido de busca N° 432/77/DBCI/DOPS/RS, 18/10/1977 – SOPS/E 1.1.86.2.1

Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos – Porto Alegre: Ministério do Exército, CIE: Argentinos Procurados. Pedido de Busca N° 771/76-II, 05/10/1976.

Arquivo privado, diretoria CADEPA: Circular N0 1- CADEPA, 06/05/1968

Nómina Sócios CADEPA, agosto 1973(?)

Assuntos Politicos: Entrada e Permanência de Estrangeiros: Permanência Definitiva: Jose Maria Villone. BR RJANRIO VV.0.0.1958031394 - Dossiê     . Caixa: 6901, Arquivo Nacional, RJ. Recuperado de: https://sian.an.gov.br/sianex/consulta/resultado_pesquisa_new.asp?v_pesquisa=jos%C3%A9%20maria%20villone&v_fundo_colecao=

Biblioteca Nacional. Recuperado de: bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

Jornal O Poti, Natal, 04/06/1978; Diário da Tarde, Curitiba, 09/07/1976; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02/06/1975; Revista Manchete, 1975, edição 1214; O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 17/08/1957, O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13/07/1957;

El País, Madrid, 02/07/1977, Edición digitalizada. Recuperado de: http://www.elpais.com/articulo/sociedad/PERON/_JUAN_DOMINGO/ARGENTINA/Jose/Maria/Villone/elpepisoc/19770702elpepisoc_19/Tes/

El País, Madrid, 17/12/1987, Edición digitalizada. Recuperado de: http://www.elpais.com/articulo/agenda/CHILE/Jose/Maria/Villone/ex/secretario/prensa/Isabel/Peron/elpepigen/19871217elpepiage_3/Tes/

Processo Nº 9 31.394-58, publicado no DOU, Fevereiro 1961, p.11. Recuperado de: https://www.jusbrasil.com.br/diarios/2641724/pg-11-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-17-02-1961

Zero Hora, 15/09/1974, capa. Recuperado de: https://www.clicrbs.com.br/pdf/16877719.pdf

 

 

Recepción: 30/04/2021

Evaluado: 13/07/2021

Versión Final: 28/08/2021

 

 



(*) Mestre em História (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), Doutor em História (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Professor Associado (Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus Campo Grande, MS). Brasil. E-mail: intbrig@yahoo.com.br  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0925-802X

[1] Assuntos Politicos: Entrada e Permanência de Estrangeiros: Permanência Definitiva: Jose Maria Villone. BR RJANRIO VV.0.0.1958031394 - Dossiê. Caixa: 6901, Arquivo Nacional, RJ.

[2] É importante destacar que Sábato (um ex-marxista) não foi um dos mais acérrimos escritores antiperonistas. Segundo Melón Pirro (2005), em El Otro Rostro del Peronismo, um artigo publicado em 1956 e elaborado em resposta a um polêmico livro do nacionalista Mário Amadeo, Sábato assinalava as razões profundas que levaram as classes subalternas da Argentina a se identificar tão intensamente como o projeto de Perón. O líder havia reconhecido a humanidade e dado visibilidade aos despossuídos da Argentina, indo além da mera outorga de direitos e benesses materiais. Ou seja, era preciso reconhecer que, com Perón, os pobres haviam se tornado cidadãos de fato e direito e isso não podia ser obliterado, independente de críticas feitas ao peronismo.

[3] De periodicidade semanal e circulação nacional, Mundo Radial era uma típica revista do rádio, voltada para um público amplo, similar a tantas outras existentes dentro e fora do país, no mesmo período. [...] Mundo Radial, ao propagar o universo folclórico como representação do nacional, integra a luta das representações travada durante o governo de Perón, em torno da conformação e definição de uma cultura argentina” (Garcia, 2015).

[4] O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 17/08/1957, p. 63 e ss.

[5] Em agosto de 1957, o mesmo Arlindo Silva entrevistou o presidente de facto argentino, general Pedro Aramburu, e seu vice, almirante Isaac Rojas, em uma longa reportagem de caráter laudatório, exaltando o liberalismo e democracia supostamente reinantes na Argentina pós-peronista e execrando “tiranos e ditadores” da América Latina em alusão direta a Perón (O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13/08/1957, p. 70). Tal posicionamento era condizente com a política de Assis Chateaubriand, empresário vinculado ao capital estadunidense e dono do Grupo Diários Associados, a qual O Cruzeiro pertencia. Paradoxalmente, o grupo era proprietário da TV Tupí, onde Villone viria posteriormente a trabalhar. Sobre o antiperonismo presente na imprensa brasileira entre 1945 e 1955, ver: Santos, 2015.

[6] O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 17/08/1957, p. 67.

[7] O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 13/07/1957, p. 91 e ss.

[8] Zero Hora, 15/09/1974, capa.

[9] Nómina Sócios CADEPA, agosto 1973.

[10] Circular N0 1- CADEPA, 06/05/1968.

[11] Revista Manchete, 1975, edição 1214, p. 18-19.

[12] Outros membros famosos do grupo eram: o banqueiro Licio Gelli, o atual presidente italiano Silvio Berlusconi, os argentinos almirante Emilio Massera, o ex-ministro Lopez Rega, o general Carlos Suarez Mason. Recuperado de:  http://www.amnistia.net/news/gelli/lesnoms.htm

[13] Aqui se encontra a lista completa dos 959 membros da Propaganda Due. Recuperado de: http://www.disinformazione.it/p2-vz.htm#V

[14] Ver figura 1.

[15] Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 02/06/1975, p. 8.

[16] Ministério do Exército, CIE: Argentinos Procurados. Pedido de Busca N° 771/76-II, 05/10/1976. Acervo Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH) – Porto Alegre.

[17] Recuperado de: http://desclasificacion.cancilleria.gob.ar/userfiles/documentos//MOU_URUGUAY/47AH001_0009.pdf

[18] El País, Madrid, 02/07/1977.

[19] DOPS/RS: José Maria Villone. Pedido de busca N° 346/77/DBCI/DOPS/RS, 30/08/1977 – SOPS/E 1.1.86.2.1 DOPS/RS: José Maria Villone. Pedido de busca N° 432/77/DBCI/DOPS/RS, 18/10/1977 – SOPS/E 1.1.86.2.1 - Acervo da Luta Contra a Ditadura - Porto Alegre.

[20] DPF/GB: Encaminhamento 0732/74 SI/SR/DPF/GB - Revista Semanal Las Bases -15/10/1974 - Dossiê DEOPS 50-E-033 – Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) – São Paulo.

[21] Recuperado de: http://desclasificacion.cancilleria.gov.ar/userfiles/documentos//MOU_URUGUAY/47AH015804_182a_184.pdf

[22] Diario da Tarde, Curitiba, 09/07/1976, p. 5.

[23] O Poti, Natal, 04/06/1978, p. 6.

[24] Importante destacar que o Paraguai não foi o único país do Cone Sul a dar guarida a refugiados de extrema-direita (alguns deles notórios criminosos de guerra) no pós-Segunda Guerra Mundial. Argentina, Brasil e Chile também serviram como local de refúgio para nazistas alemães, fascistas italianos, ustachas croatas, além de colaboracionistas pró-Eixo nazifascista de diversas origens. Ver: Guterman (2016).

[25] O Poti, Natal, 04/06/1978, p.6.

[26] El País, Madrid, 17/12/1987.

[27] Recuperado de: http://www.izquierda.info/noticias/galerias/galeriaIsabel/html/18.htm